25 de abril de 2009

Doença Crónica



Pediram-me que escrevesse um texto prático sobre a forma como se encara a doença crónica.

Antes de mais devo dizer que apesar de trabalhar há muito tempo em doença crónica só há pouco tomei verdadeira consciência pessoal do que era realmente o que eu chamaria – reencontrar um percurso apesar de... – como detesto reticências passo a explicar, a doença crónica é sempre um reecontro com a definição de nós próprios. Depois do “choque” imediatamente pós diagnóstico, esse mesmo diagnóstico obriga, por força das circunstâncias, a encontrar defesas psíquicas que evitem a desistência perante o sem número de interrogações que surgem.

Por mais anos que se trabalhe nesta área a experiência é sempre “por ouvir dizer” e eu acrescentaria “por ouvir pensar”, “por ouvir sentir”. De facto enquanto profissionais e numa perspectiva que pretendemos seja humanista o encontro com o doente faz-se de forma plena, numa atitude de dádiva mas igualmente de aprendizagem integrando-o na equipa em que a Educação para uma nova realidade assume o doente como entidade inteira, capaz e dona dos seus desígnios tomando em rédeas as decisões terapêuticas aconselhado pela equipa sempre pluridisciplinar. O doente acaba por perder a conotação negativa do termo e torna-se pessoa – a pessoa com doença crónica. Foi assim que aprendi na Instituição onde trabalhei, a Associação Protectora dos Diabéticos de Portugal (A.P.D.P.).

Circunstâncias pessoais levaram a que eu, enfim, percebesse realmente na pele o que é um diagnóstico e acabei, por incrível que possa parecer dada a suposta sapiência (a palavra até faz rir), a suportar o trajecto de adaptação a uma nova situação internamente dolorosa.

Estávamos então no Choque pós diagnóstico de facto avassalador e eventualmente destrutivo pelo stress que provoca não fossem as defesas psíquicas que nos salvaguardam e permitem a manutenção da integridade mesmo em situações que parecem verdadeiros becos sem saída ou fins de estrada.

Aproveito para fazer um pequeno parentesis que é, de todos os que eu possa fazer, o mais risonho: nós, os humanos, não temos definitivamente tendência para ratinhos experimentais colocados em labirintos, já que não vamos comer da mão de um experimentador qualquer, seja ele científico ou espiritual. De facto temos sempre hipótese de escolha, seja ela manter-mo-nos virados para a parede do tal beco sem saída ou optar por uma via, outra, quiçá criativa que nos permite procurar outra verdade.

A primeira das defesas é a negação que não representa necessáriamente um virar de costas absoluto à situação como o termo poderia indicar. A negação poderá corresponder a uma atitude de pactuar com o ocorrido, embora sem sentido, sem destino nem entrega, permitam-me um palavrão da gíria psicológica, sem internalização. A pessoa faz o que pode para fugir à confrontação com aquilo que lhe provoca angústia embora não vire as costas aos aspectos práticos quanto mais não seja por questões de sobrevivência.

A negação apesar de ser muito prática em determinados momentos da nossa existência por permitir o não-envolvimento emocional não chega, fica áquem daquilo a que nos sentimos obrigados a perguntar (questionamento interior?).

Desse questionamento surge a revolta que constitui nova fase de adaptação à doença e as perguntas são “que mal fiz eu para merecer isto?” ou “porquê eu?” e quando existem perguntas existem igualmente afirmações geralmente torturadas:”estou farto!” e “se tenho de morrer um dia que seja mas pelo menos vivo como quero”. Perguntas e afirmações obrigam a lidar com a raiva e com as lágrimas furiosas da impotência e essa magoa-nos mais do que qualquer outra sensação por representar a incapacidade que não deixa de ser um estado contra-natura.

Nesse momento as lágrimas de raiva transformam-se em tristeza e é aquí que se encontra o caminho para a verdadeira aceitação da doença. O estado depressivo (não é uma depressão) é acima de tudo um estado de tristeza, de realização emocional de uma nova situação, diferente da anterior de que se tem de fazer o luto, que se terá de enterrar. Já não existe saúde, já não se é o que era.

É-se enfim qualquer coisa diferente, mas em que é que se é diferente? Será assim tão essencial a diferença? Porá em causa aquilo que de facto se é? Não se será mais que uma simples conjunto de sintomas?

Este novo questionamento obriga a um reencontro com uma imagem nova, um novo estado evolutivo e por isso melhor porque capacitante em que as qualidades ressurgem compondo um quadro de estima por si próprio: “eu estimo-me, eu gosto de mim, eu cuido-me, eu vivo bem apesar de...”

Choque, negação, revolta, estado depressivo, aceitação” resumem um processo que não é isento de escolhos e principalmente não evita retrocessos. Se somos todos seres dinâmicos isso leva a que não haja, por um lado determinismos derrotistas – não há nada a fazer e mais vale baixar os braços – por outro nada é definitivo e os estados de beatitude não se eternizam. Numa ou noutra fase da vida a pessoa com doença crónica necessita de um acompanhamento psicológico que passa pela discussão saudável das perguntas interiores que num determinado momento se faz.

Não nos podemos esquecer que a doença encontra a pessoa num qualquer instante do seu desenvolvimento, na infância, na adolescência, na idade adulta ou mais avançada. Qualquer destes com as suas especificidades e com reacções diferentes dos familiares, dos amigos e colegas profissionais, a chamada “rede de suporte social”, também eles sujeitos da necessidade de consciencialização a uma nova situação.

O que fazer quando se ama alguém que se depara com a doença, como se suporta o facto não sermos nós a tê-la. Vai-se encontrando formas de compreender o outro e as suas reacções por mais estranhas que elas sejam, quantas vezes não se é injustiçado por a pessoa doente não compreender as tentativas de apoio, quantas vezes também não se tropeça e se cai em esparrelas manipulatórias. Também se mete a pata na poça.

Só que isto é verdade em todas as situações, com doença ou sem ela. Devemos conseguir distinguir aquilo que é derivado da doença e aquilo que é natural. E falar. E começar as frases por “eu sinto que...” “eu gostava de...”, não será essa a melhor prevenção das separações e dos divórcios. Só que nada é mais terrível que a separação ou divórcio de alguém que amamos. Queremos continuar a reconhecer nos nossos filhos, nos nossos pais, nos nossos companheiros aquilo que nos tornou comuns.

A comunhão deverá também ser adaptativa, moldada a uma nova existência, a um novo estar, a uma nova pessoa mais atenta porque mais consciente, responsável e seguramente mais completa pois que foi obrigada a ganhar uma guerra, a guerra contra si próprio, contra o abandono. Os vencedores são todos, cada um dos intervenientes e eu que vos escrevo este artigo com as ganas com que vou trabalhar todas as manhãs.

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