19 de dezembro de 2016

A mulher que também é Mãe!


Pode secar-se, num coração de mulher, a seiva de todos os amores:
nunca se extinguirá a do amor materno.
Júlio Dantas


Na história da humanidade, o papel da mulher tem vindo a sofrer várias mudanças, de acordo com as necessidades e interesses sociais de cada época. A mulher portuguesa, na sociedade atual, tem uma grande expressão no mercado de trabalho, e ainda assim continua a desempenhar as funções de organização do lar e a ter um papel preponderante no apoio à família.
A maternidade surge então como um dos papéis que algumas mulheres escolhem experienciar, sendo este um papel muito importante: não só para a mulher que também é mãe, como para o(s) seu(s) filho(s) e família, assim como para a sociedade e humanidade.
Se refletirmos um pouco sobre qual o papel da mulher, enquanto mãe, verificamos que a mesma tem uma importância ímpar na formação do(s) seu(s) filho(s) enquanto pessoa(s), assim como no(s) adulto(s) que se irá(ão) formar. A importância do seu papel começa a evidenciar-se desde muito cedo, pois o aparecimento e o inicio da vida psíquica no bebé começa na relação que é estabelecida com a mãe.
De acordo com o pediatra inglês Donald Winnicott, os cuidados maternos quando adequados são indissociáveis do bebé e garantia de uma boa saúde mental. Segundo este pediatra, um bebé isolado não existe – defendendo que quando encontramos uma criança encontramos os cuidados maternos. E acrescenta ainda que o rosto da mãe é o primeiro e único espelho verdadeiro da criança.
A relação mãe-bebé está assim relacionada de forma muito significativa com o processo de maturação da criança. Pode-se dizer que as primeiras experiências intersubjetivas se desenvolvem num banho de afetos. A mãe comunica os seus afetos interpretando as necessidades e desejos do bebé, utilizando as suas capacidades de empatia para entender os seus estados afetivos. A criança aprende a conhecer o ambiente e o seu conteúdo através da interação dinâmica com a sua mãe. No inicio assiste-se à chamada díade relacional (mãe-bebé) e posteriormente com a introdução do pai, passa a existir a chamada “tríade relacional de afetos” (mãe-pai-bebé), cada um com a sua função na formação do desenvolvimento psicológico e emocional da criança.
Pode-se dizer que a relação estabelecida entre a mãe e a criança será a “plataforma psíquica”, na qual a criança constrói a sua identidade social. Se existirem bons alicerces, esta construção será harmoniosa e estável, se não for bem-sucedida, a criança poderá desenvolver alguns problemas psicológicos e/ou problemas psicossomáticos. Esta relação irá ter um papel crucial naquele que será o desenvolvimento futuro da criança, e também enquanto adolescente e adulto, no que se refere ao seu mundo emocional interno e à sua capacidade em se relacionar consigo mesmo e com os outros.
O papel da mãe durante as várias fases de desenvolvimento do seu filho vai sofrendo adaptações, por forma a promover, progressivamente, a autonomia do seu filho. Não obstante, o seu papel continua a ser muito importante, ainda que, naturalmente deva ser gradualmente diferente. Algumas mães poderão sentir alguma dificuldade durante este processo, uma vez que o filho bebé que outrora dependia de si para sobreviver, vai, progressivamente, crescendo e querendo ser autónomo. Esta evolução deverá ser encarada pela mãe como um processo de crescimento adequado e positivo. Naturalmente, será sempre importante que a mãe possa estar presente nos momentos em que a sua presença, suporte e a chamada “função materna” sejam necessárias. E ao longo do processo de crescimento do filho ela vai sendo necessária inúmeras vezes.
O mais importante é o filho sentir que, sempre que precisar, independentemente da sua idade, poderá ter e encontrar na sua mãe, o amor, suporte, amparo e orientação que precisa. Caso este entendimento exista no filho, pode-se dizer que o papel da mulher enquanto mãe está a contribuir para um desenvolvimento emocional adequado, o qual terá repercussões positivas no desenvolvimento global do seu filho.
Nesta quadra natalícia gostaria de sugerir que, independentemente da idade mãe e do filho, celebrassem a relação que existe entre ambos. Pois como referi em alguns momentos durante esta pequena reflexão, é uma relação muito importante não só para o filho e para a mãe, mas também para a família, sociedade e humanidade.
O amor e o afeto que nascem da relação entre mãe e filho devem ser sempre celebrados, não só nesta quadra, mas todos os dias. É importante para a saúde mental da mãe e do filho que esse afeto não fique “guardado” dentro de cada um, mas que possa ser manifestado, adequadamente, através de palavras e gestos, pois a sua partilha e troca são fundamentais para o bem-estar psico-emocional e físico de ambos e consequentemente, para o bem-estar e “saúde” da família, sociedade e humanidade.

16 de maio de 2016

Aprender e brincar entre panelas e fogões





 “É um péssimo cozinheiro aquele que não pode lamber os próprios dedos.”
(William Shakespeare)
Quantos de nós ao recordarmos com ternura um cheiro ou um sabor somos levados de volta para aquela memória doce da nossa infância? O aroma do bolo quentinho da nossa mãe ou avó a sair do forno, o cheiro da panela ao lume, o calor da cozinha que nos aquecia a alma. Ou aquele prato preferido que nos deliciava e nos enchia os olhos, a barriga e, sobretudo, o coração.
Na azáfama da nossa vida, no ritmo acelerado em que ela se reproduz, entre trabalho e rotinas, entre tarefas diárias que não podem ser deixadas para amanhã, deixamos de ter tempo de qualidade para nós e, irrevogavelmente, para os nossos filhos. Fazemos tudo depressa demais, sem parar para sentir e saborear o momento.
Ao usar as palavras “sentir” e “saborear” não as escrevo em vão, talvez por me ser algo tão íntimo, vejo a cozinha como uma aliada na vivência de momentos felizes em família. Pense na sua cozinha! As crianças ficam fascinadas com tudo o que por lá encontram. Um misterioso mundo começa quando as crianças entram por aquela porta: tachos e panelas, recipientes grandes e pequenos, uma interminável amostra de especiarias e utensílios, alimentos de todas as cores e cheiros que lhe enchem o nariz de curiosidade. É talvez o lugar da casa mais apetecível de explorar, onde eles anseiam serem exploradores por conta própria e partir à descoberta de cada recanto daquela divisão que tanto os cativa.
            Já pensou levar o seu filho para a cozinha? Sim, irá precisar de tempo, de uma dose extra de paciência e, certamente, a cozinha irá pedir uma limpeza no final. Faz parte, mesmo com todo o cuidado, haverá farinha que se espalha, leite que se derrama, especiarias pelo chão. Mas a essência da cozinha é isto mesmo, é mexer com as mãos, descobrir novos cheiros, sabores, cores e texturas. É inventar e cozinhar com todos os sentidos que o nosso corpo nos permite ter. Citando William Shakespeare “é um péssimo cozinheiro aquele que não pode lamber os próprios dedos”, e as crianças, inicialmente, necessitam de sujar-se, lambuzar-se, provar e meter a mão para sentir as texturas e descobrir um mundo infindável de sabores. Haverá algo mais irresistível do que o prazer de colocar o dedo na massa do bolo e provar?!
Nunca é cedo nem tarde demais para deixar a pequenada pôr as mãos na massa, especialmente porque cozinhar com as crianças é passarem tempo de qualidade juntos, aprenderem e divertirem-se.
Descontração, paciência, tempo e criatividade são ingredientes essenciais que misturados delicadamente e envolvidos, com uma dose de amor, resultam em deliciosos hábitos para toda a família.
Fortificar a relação com a comida, ensinar o nome de cada alimento e a sua importância, aprender como usar da melhor forma os legumes e a fruta, estar em contacto com novos alimentos incentiva a criança a provar e a criar novos hábitos alimentares, permitindo aumentar e educar o paladar. Além disso ao envolvê-las desde cedo na preparação das refeições, na escolha da receita, na organização dos ingredientes e do material necessário para a sua realização facilita o desenvolvimento de valores como a organização e a responsabilidade.
Entre panelas e fogões as crianças aprendem muito! O tempo passado na cozinha é, em simultâneo, uma escola onde a aprendizagem se encontra agradavelmente disfarçada. As crianças aprendem valores necessários para o seu desenvolvimento psicológico como a autonomia, a autoestima, a concentração, a criatividade, o valor de colaborar nas tarefas e a importância de as realizar até ao fim, desenvolvem a sua destreza manual e permite trabalhar a motivação da criança para o conhecimento, a descoberta, o trabalho em equipa e o saber esperar. Realmente cozinhar requer muita paciência e disciplina: seguir a receita e respeitar as suas instruções, selecionar os ingredientes e os utensílios necessários, esperar que a massa esteja bem mexida e envolvida ou que um bolo coza, ou que arrefeça para ser degustado.
Na cozinha as crianças trabalham e desenvolvem competências imprescindíveis em quase todas as áreas do conhecimento. Aprendem mais sobre a matemática, quando contam ou pesam um ingrediente ou calculam o tempo para o prato ficar pronto. Será uma forma engraçada de aprender a contar ou aperfeiçoar os conhecimentos dos números, medidas e quantidades.
Aprendem mais sobre o português, através da leitura das receitas, que lhes permite praticar e conhecer novas palavras.
Aprendem mais sobre a ciência, ao descobrirem a origem dos alimentos e dos seus benefícios e ao criarem e verificarem como os alimentos se transformam.
Aprendem mais sobre cultura, as receitas são, muitas das vezes, uma viagem pelo mundo e uma forma engraçada de entrar na cozinha de outros povos, abrindo caminho para conversar sobre costumes, tradições, línguas e paladares diferentes.
            O leque de conhecimento que descobrirá é interminável. Quando a criança demonstrar alguma habilidade manual para manipular os alimentos e conseguir compreender e executar instruções, será o momento ideal para os inserir no mundo da culinária.
Comece com receitas pequenas, simples e acessíveis, tendo em conta a sua idade e o grau de exigência. As tarefas devem ser, de forma clara, adaptadas ao desenvolvimento de cada criança e é crucial a valorização das suas capacidades. Os mais pequenos podem lavar a fruta e os vegetais, misturar os alimentos com uma colher como as massas leves ou permita-lhes envolver a fruta e o iogurte, passar os alimentos de um recipiente para o outro com a mão ou a colher, decorar bolos, cortar a massa de bolachas em formas diferentes. Os mais crescidos podem cortar fruta e vegetais, partir e bater os ovos, medir os diferentes ingredientes, misturar os alimentos, barrar os bolos com uma cobertura, ler as receitas em voz alta.
            A cozinha será um recanto onde viverá momentos memoráveis com o seu filho. Coloquem o avental, um chapéu de cozinheiro e desfrutem do prazer de criarem algo juntos.
No fim, elogie muito, partilhem as emoções desse dia e pare, sinta e saboreie o momento.
Retificação: Nos últimos artigos, por lapso nosso, não foram incluídos os nomes das colaboradoras Adelaide Ruivinho e Juliana Martins. Aos leitores e às visadas o nosso pedido de desculpas. P’lo NEIP.

26 de abril de 2016

Imagina-os de cuecas




“Há pessoas desagradáveis apesar das suas qualidades
e outras encantadoras apesar dos seus defeitos.”
 François La Rochefoucauld.







Neste pequeno texto irei tentar conduzir o leitor pelo complexo mundo da ansiedade social, esperando conseguir esclarecê-lo e sensibilizá-lo para uma realidade vivida por muitos.
Perante situações stressantes ou que provoquem ansiedade, é desencadeada uma resposta ansiosa que faz parte do sistema adaptativo de sobrevivência. Já todos nós vivemos alguma situação que nos tenha despoletado nervosismo, tensão e ansiedade, a qual, por sua vez, irá provocar uma reação no nosso corpo. Por vezes experimentamos tremores, sudação, urgência de micção, rubor e outros sintomas somáticos que são respostas adaptativas que remetem aos primórdios da existência humana e que ajudavam à sobrevivência numa era em que o perigo se encontrava ao virar de cada esquina.
A ansiedade desempenha importantes funções quando em pequenas doses, mas se se prolongar no tempo ou atingir níveis elevados pode acarretar diversos problemas. A Ansiedade Social é experimentada em situações sociais, na interação com outras pessoas, tanto hierarquicamente tidas como superiores, como em contextos sociais que envolvam um determinado número de indivíduos. Em casos mais extremos pode levar ao evitamento de determinadas situações sociais e, consequentemente, ao isolamento social.
O receio de ser avaliado negativamente pelos outros, de parecer ridículo, desajeitado, de sentir que não se está à altura de uma determinada situação, ou de ver o seu estatuto social diminuído, desencadeia graus elevados de desconforto e medo, limitando severamente a vida diária de quem sofre deste tipo de ansiedade. Situações aparentemente triviais tornam-se desconfortáveis devido a um estado permanente de vigilância, avaliação e comparação com os demais na tentativa de se protegerem de avaliações negativas pelos outros.
O foco da ansiedade social é o desejo de transmitir aos outros uma impressão favorável de si mesmo, combinado de uma grande insegurança acerca da sua capacidade para o conseguir.
Quando confrontados com situações sociais que os indivíduos com Ansiedade Social interpretam como ameaçadoras ou perigosas são ativados alguns sintomas somáticos e cognitivos, que podem incluir tremor, rubor, taquicardia, sudação, palpitações cardíacas, pensamentos avaliativos negativos, dificuldades de concentração ou “vazio mental”. Por sua vez, estes sintomas podem ser reinterpretados como uma nova ameaça, criando um ciclo vicioso que mantém ou amplifica ainda mais a ansiedade.
Nestas situações interpretadas como ameaçadoras, os indivíduos com Ansiedade Social desenvolvem uma atenção auto-focada, centrando-se na observação e monitorização de si mesmos. Esta atenção tem um efeito intensificador da perceção das sensações corporais, tornando mais consistente e intensificando os sintomas somáticos e cognitivos de ansiedade já existentes. Para além disto, apresenta um efeito de interferência no processamento dos estímulos originados na situação social, levando a que a pessoa processe deficitariamente os sinais de comunicação emitidos pelos outros.
A informação interoceptiva (que é originada no organismo como é exemplo a sudação) intensificada pela atenção auto-focada, é utilizada para criar uma imagem de si mesmo, que assume corresponder ou refletir a forma como os demais o vêem ou pensam acerca dele. Uma pessoa com Ansiedade Social centra preferencialmente a sua atenção nos sinais somáticos e cognitivos da ansiedade que está a sentir, construindo uma imagem (normalmente, negativa e distorcida) de si que assume automaticamente ser a impressão que os outros têm dele.
A Ansiedade Social é, usualmente, acompanhada de comportamentos de segurança que ajudam à sua manutenção. Quando confrontados com uma situação social percecionada como ameaçadora, pessoas com Ansiedade Social tendem a utilizar um conjunto de comportamentos através dos quais procuram diminuir o sentimento de ameaça e ansiedade, bem como o risco de serem avaliados negativamente. Muitas vezes, por exemplo, tentam evitar atrair a atenção para si, verificam ou controlam cuidadosamente o que vão dizer ou evitam o contacto visual.
A possibilidade destas pessoas terem experiências sociais realmente novas e que possam desconfirmar o seu receio de ser avaliada negativamente fica desta forma reduzida, condenando-a à repetição de ciclos interpessoais rígidos que mantém a Ansiedade. Um aspeto, frequentemente, observado na Ansiedade Social é a manutenção do receio de uma avaliação negativa pelos demais apesar das experiências sociais que aparentemente deveriam desconfirmar esse receio, assim como, o benefício limitado que muitos desses indivíduos retiram de exercícios de exposição. 
A Ansiedade Social, normalmente, surge acompanhada pela ansiedade antecipatória e o processamento pós-situação. As pessoas com Ansiedade Social tendem a antecipar uma situação social receada e antever em detalhe o que poderá acontecer nessa mesma situação. Quando iniciam esta antecipação ficam ansiosos e os seus pensamentos são dominados por memórias dos seus fracassos em situações sociais anteriores, imagens negativas de si na situação e pensamentos automáticos de insucesso.
Usualmente, estas pessoas ao tentarem diminuir o receio de avaliação negativa pelos outros, antecipando detalhadamente o que poderá ocorrer na situação social, geram um conjunto de processos cognitivos que vão aumentar a sua ansiedade e contribuir para um funcionamento social pouco eficiente, o que, por sua vez, contribui para a manutenção da Ansiedade Social.
Se a Ansiedade Social diminui habitualmente ao sair ou terminar a situação de interação, as pessoas com esta perturbação descrevem um sentimento de humilhação ou vergonha que persiste por um longo período de tempo após a situação social. Este sentimento de vergonha parece estar associado à tendência para a realização da “autópsia” da situação, revendo com detalhe tudo aquilo que aconteceu na mesma. Apesar do objetivo desta “autópsia” ser o de tranquilizar o receio de ter sido avaliado negativamente, o seu resultado é inverso e a “autópsia” aumenta o sentimento de humilhação e inadequação social.
Na Ansiedade Social são desenvolvidos auto-esquemas, ou seja crenças acerca de si, de ineficácia e inaptidão para lidar com situações sociais e de suposições rígidas e disfuncionais acerca do que deve ser um comportamento social adequado.
Em suma, indivíduos com Ansiedade Social interpretam as situações sociais como ameaçadoras, distorcem negativamente a avaliação do seu desempenho social e avaliam erroneamente, e de forma excessiva, a visibilidade dos sintomas da sua ansiedade pelos outros.
A Ansiedade Social causa um grande sofrimento a quem apresenta estes sintomas, mas com a devida ajuda especializada consegue ser tratada.


Para se poder ser membro irrepreensível dum rebanho de carneiros é preciso,
antes de mais nada, ser-se carneiro.
 Albert Einstein.

16 de março de 2016

Género (s)- do estigma à aceitação - 2ª parte


Uma elevada autoestima é, por vezes, vital para o desenvolvimento da capacidade de resolver os desafios que a vida apresenta. Na maioria das sociedades e culturas as pessoas que variam dos esquemas de género convencionais são estigmatizadas sendo que as hostilidades que surgem deste estigma podem causar desgaste emocional na criança e dificultar o desenvolvimento saudável da sua identidade. Sem o apoio dos pais, a criança com esta especificidade pode, inclusive, chegar a acreditar que merece ser estigmatizada. De forma a bloquear os efeitos negativos do estigma social, os pais, devem demonstrar uma atitude afirmativa comunicando à criança que a aceitam e a respeitam tal como ela é.
            Como qualquer criança que precisa de amor, aceitação e compreensão, a criança com comportamentos de género variantes porventura necessita destes sentimentos ainda de um modo mais especial. Quanto mais críticos forem os seus pares e a sociedade em geral, mais ela necessita do apoio e da aceitação dos de sua casa e familiares mais próximos. De facto, as crianças são muito mais resistentes e capazes de suportar desafios difíceis quando sentem que os seus pais estão do seu lado numa atitude de apoio incondicional e conscientes dos seus papéis de protetores. Muitas crianças com traços variantes de género passam por isolamento social e sofrem maus-tratos. Em situações limite, o lar pode ser o único espaço onde a criança se possa sentir a salvo das atitudes de censura e de hostilidade. Desta forma, é importante criar uma atmosfera de aceitação em casa para que ela possa expressar os seus interesses livremente. É, de facto, um objetivo interessante começar por trabalhar a sua própria casa como um espaço privilegiado onde esta possa sentir que pode atuar de maneira autêntica sem ter que autocensurar-se para benefício de outrem.
            No que respeita ao enquadramento social e vivencias quotidianas de uma criança com esta especificidade é importante incentivar atividades das quais a criança desfrute e para as quais detém um dom natural não sendo aconselhável forçar atividades que ela sinta como impostas. Deve-se enfatizar que cada pessoa é única e diferente, evitando utilizar frases como “tens que brincar com bonecas”, “jogar à bola é para os meninos”. Em vez de se utilizar generalizações que são falsas, deve-se explicar que, ainda que a maioria das meninas (por ex.) não estão interessadas em futebol, existem meninas que estão e isso não faz mal.
            É importante falar abertamente com a criança e com calma acerca dos seus interesses e comportamentos fazendo com que ela reconheça que é, diferente, em termos positivos. Usar frases como “és única” e conversando de como alguém se pode sentir ao perceber-se diferente dos outros. No entanto, esta criança não pode sentir que é a única no mundo a sentir-se assim. Ajudá-la a compreender que, mesmo que nem todos a entendam ou respeitem, o gostar de coisas diferentes não é motivo para se envergonhar, mas sim uma qualidade única e positiva. Devemos transmitir uma mensagem construtiva e assegurar à criança que quando ela crescer vai ter amigos que irão compartir os seus interesses. Será pois importante cultivar amizade com outras famílias que tenham uma atitude tolerante e de aceitação de todo o tipo de diferenças.
Este desafio também afecta outros familiares. Por isso é importante falar com os familiares mais próximos, educadores e amigos da família, comunicando quais são as necessidades da criança e o que se espera deles.
            As crianças que são verbalmente ou fisicamente agredidas pelos seus pares ficam muitas vezes assustadas ou sentem-se demasiado envergonhadas para falar do assunto. O ideal é que a criança conte o que se passa com ela, no entanto, ela nem sempre irá expressar o que sente. É necessário estarmos atentos a possíveis sinais que possam indicar que ela está com problemas. Estes sinais incluem o negar-se a ir à escola, não querer sair de casa, queixar-se de dores e sintomas sem causa física e, chorar excessivamente ou sem motivo aparente.
            Jamais se deve culpar a criança, a si mesmo ou ao seu companheiro(a). Os comportamentos de género variantes são o produto de como a natureza criou a criança. Estas características não foram causadas pelos pais e não podem ser modificadas por ninguém. De facto, ao preocupar-se em que a criança mude vai estar a perder a oportunidade de desfrutar da própria infância da criança e, simultaneamente, perder-se-ão a longo prazo as recompensas de uma atitude de afirmação e aceitação por parte dos pais. De facto, a pressão social apenas leva a que a criança esconda os seus interesses e a suprimir a sua espontaneidade. Isto intensifica-se se a criança acreditar que deve ser diferente do que é para ser aceite e querida pelos seus pais. Ao pressionar, os pais comunicam que é preferível atuar de uma maneira que não é natural, do que ser autêntico e coerente consigo mesmo.
O ser diferente não valida a intolerância baseada em preconceitos. Não se deve reprovar a criança pela crueldade dos outros, pois ninguém merece ser maltratado. Quando se souber de um ato de agressão dirigido à criança é importante averiguar o que se passou e ajudar a criança a planear como responder no futuro.



5 de fevereiro de 2016

Género(s)



“Com palavras e atos nos inserimos no mundo humano, realizando um segundo nascimento, no qual confirmamos e assumimos o fato original e singular do nosso aparecimento físico.”
Hannah Arendt
Filósofa alemã

Estudos recentes apontam para os efeitos dos androgénios fetais na organização cerebral de um padrão sexual e, também, no facto da testosterona afetar os neurónios cerebrais que contribuem para a masculinização do cérebro, em áreas como o hipotálamo.
            Antes dos três anos de idade, as crianças desenvolvem interesses e preferências que são típicas do seu género. Numa etapa seguinte, sensivelmente aos cinco ou seis anos de idade, elas são já capazes de reconhecer os comportamentos de género, tanto os que são típicos para cada um dos sexos como os que não são. No entanto, algumas crianças desenvolvem-se de forma diferente, possuindo interesses que são considerados típicos do outro sexo e, por vezes, preferem a aparência e atuam como se fossem do outro sexo. Estas condutas designam-se por comportamentos de género variantes, visto serem condutas que variam da expectativa social para cada género. As crianças com comportamentos de género variantes demonstram interesses e preferências que não se adaptam às normas culturais usualmente aceites para cada um dos géneros.
            Quando, nalguns casos, estes comportamentos de género variantes ocorrem de forma generalizada, marcada e persistente, pode-se concluir que o sujeito possui um padrão de comportamentos de género variantes que se justifica no seu interesse intenso e constante há já alguns anos. Todavia, as condutas que se observam com maior frequência têm tendência a tornar-se cada vez menos frequentes, uma vez que a criança interage mais com os seus pares no ambiente da escola. Esta diminuição dos comportamentos observados pode indicar que, à medida que matura e experimenta a crítica dos seus pares, a criança suprime algumas condutas ou dissimula para passar desapercebida. Por volta dos cinco/seis anos de idade, as crianças começam a ser mais influenciadas pela pressão social para se ajustarem aos esquemas de género convencionais. Esta pressão leva-as a modificar a aparência dos seus comportamentos para se adequar às expectativas sociais. A existência de comportamentos aparentemente diferentes não reflete necessariamente uma mudança no estado psíquico interior da criança.
Os comportamentos de género estão principalmente determinados pelos genes, ou seja, a predisposição genética faz com que os comportamentos de género fiquem “impressos nos circuitos” do cérebro antes ou pouco depois do nascimento. Obviamente o conteúdo específico dos papéis masculinos e femininos deve ser aprendido por todas as crianças, mas aquelas que variam nos seus comportamentos de género parecem estar biologicamente predispostas a assumir aspectos dos papéis típicos do outro sexo.
            Nesse sentido, é importante salientar que os comportamentos de género variantes não são causados pela forma de atuar dos pais ou por acontecimentos da infância, nem por patologia mental ou conflito psicológico. No entanto, devido à pressão social, estas crianças tendem a experimentar rejeição, críticas e maus-tratos, o que predispõe o surgimento de dificuldades psicológicas.
            Como adolescente e adulto, o sujeito que desenvolve um padrão de comportamentos de género variantes pode sentir-se emocional e fisicamente atraído por pessoas do sexo oposto, do mesmo sexo ou de ambos os sexos. Mesmo que estas três hipóteses sejam possíveis para qualquer criança, estudos de investigação que têm observado, por exemplo, o desenvolvimento de meninas com comportamentos de género variantes até à idade adulta revelam que, como adultas, a maioria delas têm uma atração física e afetiva por pessoas do seu sexo. Por outro lado, algumas meninas que têm rasgos identificativos de uma psique atitudinal masculina passam a ser adultas convencionalmente femininas. Outras, mantêm na idade adulta atitudes e interesses masculinos em maior ou menor grau.
            É importante referir que, caso subsista a pressão externa dos pais, professores e técnicos, não é capaz de modificar as características de identidade sexual essenciais da personalidade, uma vez que o temperamento e outras características profundas da identidade do sujeito são preestabelecidos e visíveis numa estrutura psíquica organizada desde a primeira infância. Além disso, esta dinâmica profundamente antipedagógica será necessariamente interpretada pela criança / jovem como um acumular de humilhações que, consequentemente, destruirá a confiança em si mesma e afetará gravemente a sua autoestima. 

Obs.: O presente artigo terá continuidade na próxima edição do JBG




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