5 de setembro de 2008

Reinventar a Doença





O título não é mau, convenhamos, foi um título proposto e por ser uma proposta podemos modificá-lo: Reiventar-mo-nos na Doença. É melhor porque reverte para a pessoa e não para a entidade que lhe é externa e estranha – a doença – é melhor porque utiliza a primeira pessoa do plural e isso inclui-nos, a nós, a mim e a si, que me lê. Porque não acontece só aos outros, porque quando falamos em doença pensamos em situações prolongadas e não acidentes, pensamos naquilo que é crónico ou tendencialmente crónico e não no agudo - aquilo que se resolve com uma qualquer intervenção ou com a morte.

No processo de adaptação à doença existem uma série de fases mas antes existe a vida sem a doença e é dessa vida que a pessoa tem de fazer o luto, o luto da saúde para finalmente aceitar a nova situação reinventando-se, claro que num equilíbrio sempre precário mas quem não tem equilíbrios precários?
Pensei então passar a mensagem num texto escrito na primeira pessoa. Mostram-se as fases, a de antes e as de depois, como um testemunho que apesar de ficcionado poderá ser sempre o nosso.

A vida é um tango.

Encontro companheiros e companheiras com quem danço. Uns com a sensualidade que a relação implica, outros com a técnica que a dança exige. Se umas vezes os passos são obrigatórios e as voltas determinadas, outras vezes damo-nos ao direito de improvisar e dançar a um compasso que é o nosso, porventura aquele que o coração dita.

É um tango, mas também é improvisação, um jazz de harmonias, umas vezes sólidas outras descontraídas. Penso ter ganho alguma maturidade no percurso, se é que se atinge alguma vez essa maravilhosa sensação de bem-estar, de trabalho cumprido, trabalho emocional e trabalho profissional. Acho que me fico por uma ansiedadezinha a criar o frenesim, avançar mais e mais, educar ainda o gosto de mais sabores, cheiros e novos olhares. Olho para ela a dormir, que ternura me faz, os cabelos dela que ainda há pouco se confundiam com os meus, espalham-se agora nos lençóis. Tudo em silêncio, apenas a respiração profunda deste amor, mas que me dá a calma e a certeza de uma presença que me acompanha e me dá paz.

Tomo o duche, gosto de sentir o meu corpo forte, os contornos bem definidos, torneados, correctos. Há uma sensualidade própria na forma como passo o gel pelos meus braços e pernas. Faço a barba e ponho um creme que me recomendaram anti-oxidante de marca, um cheiro fabuloso pouco intenso que suaviza a pele. Gosto dos meus olhos brilhantes e dos caracóis do meu cabelo. Sinto-me bem, esplêndido até depois do perfume que me assenta como uma luva e se espraia pelo corpo todo, para manter a minha presença mesmo depois de eu ter saído.

Saio, o fresco da manhã assalta-me e prepara-me para o dia. Enfio-me no carro. Ainda não é o Jaguar que desejo, mas para lá caminho. É um MG frivolamente desportivo, que segundo dizem, parece ter sido criado para mim. Adoro que olhem para mim. Sinto-me bonito. Quero que falem de mim. Que as mulheres sussurrem entre si quando passo e expulsem risinhos. Eu finjo não reparar, uma certa non-chalence fica bem.

Entro no serviço. Bendita eficiência, eficácia, perfeição. São palavras que gosto, com que me identifico e me definem. Sou um organizador nato, distribuo trabalho e arranco para uma reunião em que arraso. Almoço de trabalho. Tarde a enviar e-mails. Chego a casa às 8:00, a tempo do jantar tardio que combinámos. Arranjamo-nos juntos, gosto de a ver pintar-se. Eu com uma gravata Dior fabulosa que fica a matar com o fato cinzento claro.

O grupo que vai ao jantar é o nosso habitual com algumas surpresas, um casal giríssimo, com interesse, que acaba por nos empurrar a todos para um novo bar que abriu há pouco e onde dançámos até tarde.

Amanhã, sábado, vamos tomar o pequeno almoço numa esplanada, cada um com o seu livro e trocaremos de vez em quando olhares cúmplices e atrevidos.

Eu tenho qualidade de vida.

Estou entupido, perdido, ferido, reduzido. Estou em branco, não me lembro de nada, não sei nada, vagueio num vácuo de ignorância, de insegurança. Viajo num balão cheio de coisas feias, pútridas e más. Insufla o balão e eu entro em apneia. Não consigo respirar, sufoco atulhado na trampa que transformou a minha vida.

Estou em choque. Diabetes depois de um grande cansaço, de um emagrecimento inexplicável e de umas análises estúpidas que o médico da empresa me obrigou a fazer.

Estou-me nas tintas para isto tudo e vou viver de costas viradas. Continuo a vida como de costume, aliás, a vida não pode mudar assim de repente, isso não existe, é demasiado telenovela. Piroseira.

Vou a uma clínica qualquer, num sítio qualquer caríssimo e resolvo isto. Diabetes pró caraças!

Segundo parece, estava numa fase qualquer a que chamam negação, mas eu quero que se lixe a fase e quero também que se lixe o cão que ela comprou. Um cão? Mas porque é que ela quer um raio de um cão? Não nos falta o cão! Podiam era ir viajar ela e o cão. Não quero ninguém, não preciso de ninguém.

Eu tenho é de ir trabalhar, dar a insulina, variar os locais de injecção, contabilizar os hidratos de carbono, reduzir as gorduras, fazer quatro glicémias/dia, desporto em pílulas, obrigatório, sem graça e aturar o idiota do médico, que me azucrina os ouvidos mais o psicólogo que tem a mania que é compreensivo e empático e meigo e terno e meigo e terno e meigo e terno.

E meigo e terno e eu não quero. Eu não quero que seja meigo nem terno. Eu não quero nada porque me sinto inútil. Já nem sinto revolta. Abandono-me numa greve de razões, razões para existir, para criar, para de alguma forma ser original, razões para mudar, para crescer, para reagir a esta sensação de fatalismo irreversível, de buraco no peito. Eu sou o próprio buraco!

Tenho-me sentido mal. Depois da semana no hospital, a verdadeira sensação de inutilidade, pareço ter envelhecido dez anos. O pijama parecia-me miserável, tanto quanto eu, miserável. Apareceram alguns amigos, mas eu virava a cara para não os ver. Ela aparecia todos os dias, assim como agora, todas as manhãs, todas as noites, linda, uma beleza inatingível porque sou feio e tive-lhe raiva e sinto culpa por isso.

Há tanto tempo que não desejo, que não a desejo, nem me lembro do seu corpo, nem do meu. Também não me desejo. Perdi o apetite, tenho os infernos a matar-me o sono, os medos rudes a maltratar-me, uma dor funda no peito que acusa a impotência. A impotência de tudo. Incomodo-me. Meti baixa. Rebaixa. Rebaixa-me. Rebaixo-me. Fecho-me também. Não estou para ninguém. Não tenho qualidade de vida. Desqualifico-me.

Ontem tive uma reunião com o diabetologista, estava lá a equipa toda.

Outro tango, mais lento, mais à cautela. O psicólogo deu-me uma desanda que até andei de banda, a enfermeira criou-me um programa por objectivos a par da dietista… quer dizer, encostaram-me à parede. A parede é tudo o que está para trás: negar, revoltar-me, deprimir. Acho que nem houve grande lugar para negociações. Disseram-me que apesar de ter de adequar a diabetes à minha vida, não haveria concessões: a aposta seria minha, caso contrário eles denunciariam o contrato e eu que me desenvencilhasse sozinho.

A opção é cair no trágico ou aceitar o mágico, refazer-me, restaurar-me. Parece não haver escolha. Vamos a isto!

A primeira coisa que fiz foi comprar uma máquina fotográfica digital último modelo para tirar fotografias ao cão. Ao cão e a ela que está cada vez mais bonita. Reorganizei o serviço no escritório para me adaptar ao esquema insulínico e às prioridades alimentares. In laborum felicitas e outras tretas latinas para eu me rir delas e rir-me de mim.

Convidei-a para jantar e ofereci-lhe flores que murcharam entretanto e ela disse que só por isso só eu lhas poderia ter dado, rimo-nos a perder. Para lhe provar o contrário, fizemos amor como uns loucos. Grande homem! E grande mulher que se aguentou nestes tempos trovejados.

Os amigos reencontrados, os projectos recomeçados. A ansiedade está a um nível óptimo, o suficiente para me empurrar a fazer coisas. A depressão foi necessária para repor as ditas coisas segundo uma nova realidade. A revolta não serve de nada porque se vira contra mim.

Acabaram-se os relatórios contínuos da paixão mórbida. Lembro-me de uma frase do Pessoa que pode adaptar-se a esta relação minha com a diabetes: “Primeiro estranha-se, depois entranha-se” e como hoje me sinto um bocado pedante, faço mais uma citação e em inglês que é mais chique. A frase é do Konrad Lorenz e é preconizadora de uma evolução pessoal embora mantenha a dúvida para que tenhamos sempre de lutar: “Said, but not heard. Heard but not understood. Understood but not accepted. Accepted but not put into practice. Put into practice…for how long”.

Mexo-me, ajo e a dor funda do peito foi-se desenterrando e recomeça um tango, um tango a dois para uma vida reinventada.

Eu tenho qualidade de vida.

Viver no Limite: Identidade e Adolescência




A adolescência vive-se no limite. Nos limites do eu, nos limites do outro. A expandir fronteiras. O adolescente saudável é imortal. Não tem medo de morrer. Tem apenas medo de não ser visto. É o momento mais importante da construção da identidade após a primeira infância. Esta fase é decisiva e o adolescente sente-o. Sabe e sente que nesta fase pode mudar o mundo. O seu mundo. A si próprio. Por outro lado está mais sensível aos seus defeitos, às suas deficiências. É o mais vulnerável dos seres humanos. E o mais forte. O adolescente são ousa enfrentar os seus demónios internos, as suas identificações primárias, as representações que os adultos lhe impuseram, as suas obrigações e imposições.

O adolescente tem de construir um corpo novo, de sensações novas, de novos desconfortos. Um referencial diferente. Um corpo que se constrói através do outro, dos seus objectos de amor. Só a partir daí ele pode preencher esse corpo com aquilo que sobra da luta, do pouco que ele aproveita daquilo que lhe tinham dado. É aqui que ele percebe que alguns dos presentes que recebeu na infância estavam envenenados. Está na altura de purgar tudo isso. 

É nesta fase, de equilíbrios psiquícos precários, que o adolescente pode tentar refazer a sua história familiar, a criança que foi e libertar-se das cargas emocionais, das angústias, dos complexos, das dúvidas, para desabrochar numa pessoa mais sã, mais livre. Pode também deixar-se ir e repetir ad eternum aquilo que os outros repetiram nele.

Existe também o adolescente-sombra. Aquele que passa pela adolescência como quem passa por entre as gotas da chuva. Esquivando o encontro inevitável na encruzilhada entre o passado e o futuro. Está orientado, tem certezas, tem um plano para a vida. Este é o adolescente que não dá problemas aos pais, que é um aluno exemplar, que perdeu o comboio dos seus sonhos, em prol duma vida pseudo-adultizada, semi-responsável. Este adolescente está doente. Ele não é mais que o espectro de si próprio. Um adulto precoce, que se hipotecou cedo de mais.

A adolescência tem sido tratada como a zona cinzenta, desvalorizada pela sociedade, pela própria ciência psicológica. É preferível esperar que passe, como uma qualquer doença sazonal, sem lhe mexer muito, do que envolver-se nos dramas e angústias adolescentes. Hoje os nossos gabinetes enchem-se de adolescentes suficientemente saudáveis para estarem confusos, desorientados, e até deprimidos. Muitos chegam pelo seu próprio pé, com um caderno de encargos próprio e a consciência da sua necessidade do resolver. Outros vêm obrigados, empurrados pelos adultos que não lhes reconhecem um espaço físico e mental nas suas vidas, porque eles ousam pisar fora do risco. Ou porque o confronto com os seus comportamentos lhes traz o desconforto como uma aparição do passado.

Socialmente avançou-se no sentido de conceder um espaço, uma moratória psicossocial aos adolescentes. É importante que assim seja. Mas não podemos deixá-los ao abandono e esperar que eles cresçam sós. Devemos vê-los e entendê-los como seres únicos individuais e independentes de nós. Com potencial para mudarem o mundo. O seu e o nosso.